192 dias em Moçambique traduziram-se em mais de 4000 fotografias, 50 vídeos e inúmeros momentos cuja beleza nenhuma objetiva poderá alguma vez captar. Entre Fevereiro e Agosto de 2017 vivi em Maputo, ao abrigo do programa INOV Contacto, da agência portuguesa AICEP, e sempre que recordo esta experiência percebo que foi especial.
Quando me disseram que tinha sido selecionado para ir para Moçambique pensei em não ir. Queria os Estados Unidos, Singapura, México, Cazaquistão. África não estava nos meus planos. Acabei por ir. Tinha 24 anos. Agora, três anos depois, sei que África era o que fazia sentido na altura.
Escrevi o texto que se segue mal cheguei a casa, em Santa Maria da Feira, e ao revê-lo não consegui alterar uma palavra ou escrever de outra forma. Está tudo aqui: os medos, a vontade de regressar a Portugal e a vontade de ficar em Maputo, os amigos que fiz, as ideias pré-concebidas ultrapassadas, a honra desta aventura.
Sobrevivi à época dos ventos, existe mesmo!, e enfrentei, pela primeira vez, tornados de lixo capazes de sedimentar objetos de origem desconhecida em sítios improváveis como as ingénuas das minhas orelhas. Tive batalhas com a falta de luz e de água.
“Eish” é, provavelmente, a palavra que melhor define uma aventura em tudo diferente do que tinha imaginado, mas da qual não abdicaria. Descobri que ser chamado de “pai” pode ser perfeitamente natural e é, até, sinal de respeito. As “mamãs” proliferam nos passeios largos das principais avenidas, vendendo essencialmente fruta e legumes.
Encontrei algumas das mais belas expressões faciais de sempre, rostos repletos de vida, sedentos por descobrir. Conheci dois pescadores, em Bilene, que não faziam ideia que existiam pescadores em Portugal e, caso existam (reconheceram eles), só poderiam ser negros.
A cidade das Acácias, como é falaciosamente conhecida, por erro do pré-25 de Abril, oferece o charme de um local em construção, cheia de possibilidades e enigmas, mas também acorrentada a medos e problemas que só o tempo poderá ajudar a curar.
O Verão e o Inverno vão-se sobrepondo numa harmonia que os dias, curtos, alimentam sem artifícios. Neste país, que se estende ao longo de mais de 2.000 quilómetros, a vida não adquire a dimensão pesada de futuro que na Europa tanto significa. O presente é o que realmente importa, e cada dia é mais um dia que passa numa vida que pode não ser a melhor mas que usufrui de um equilíbrio tão difícil de alcançar.
Moçambique faz-se de encontros com a Suazilândia, África do Sul e Lesoto. É união das estradas de Inhambane, do mercado da Macia e do frango de Xai-Xai (aquele que um dia alguém disse não saber onde ficava). O jazz escuta-se ao longo de toda a cidade, repleta de cultura, criações e possibilidades. As molduras querem ousadas, o enquadramento pouco equilibrado e o grão quanto mais intenso melhor.
Em Setembro de 2017, dei a este texto o título Guardar África no Word. Parece que me precipitei. O título deveria ter sido o Word (ainda) está a guardar África. É impossível encerrar este capítulo. Faz parte de quem sou. Tornou-me mais curioso.
Durante seis meses descobri experimentei uma nova forma de olhar o ser humano, debati geopolítica, descobri o jazz africano, de
sconfiei várias vezes que iria ser roubado e ri, ri muito, quando menos esperava. No fundo, guardo África com saudades, mas também certeza de que não lhe pertenço. Vivi-a, venturei-me, deslizei na neve e bebi água de coco. Tirei fotografias e tomei decisões. A Mamã África, de facto, domina o tempo, não vive apenas em casas de zinco, e surpreende. É o ritmo da marrabenta que seduz, o marisco que afinal não abunda e o chapa que desafia qualquer um.
Maputo é mais do que a selva urbana em
que vive, a cidade que parece em estado de sítio permanente, com tanto ainda por fazer mas que já alcançou tanto. É também a casa de milhares de portugueses, o sítio onde se pode vislumbrar o pôr-do-sol a partir de 33 andares, acompanhar a construção de uma ponte megalómana, ouvir a simplicidade das suas gentes e atravessar o rio para almoçar.
Os chocolates a que não resisti, os silêncios que tanta falta faziam e as aventuras domésticas compõem seis meses de uma fase que deixa saudade.
Obrigado Mamã África.